LI "PSSICA"






Pssica” (Boitempo Editorial, 2015), de Edyr Augusto, menos de cem páginas, é um texto pesado. Grande. Dei um tempo após a leitura. Reações estéticas exigiram. Confusões cerebrais, emocionais. Tempo para respirar, digerir, ordenar o caos interno. Alguma catarse. Devorei o livro em poucas horas. Sem pausa. Mas dificilmente não se o devorará às pressas. O texto sincopado - a dispensar convenções gráficas, sobras, todo ritmo, tão rápido nas palavras e frases quanto duro, denso no seco retrato pintado, obriga. Olhos numa página, dedos em pinça a esfregar a próxima. A narrativa tem capítulos curtos, com o que me deu a impressão de se compor de contos quando comecei o segundo capítulo – outros personagens, outro ambiente. No primeiro, Belém; no segundo, Curralinho, Marajó; e supus que a unidade estaria apenas na forma textual e no teor noir das histórias. Mas os fios não demoram a se entrecruzar e, no ritmo sempre frenético, começar a revelar imensa rede de dores, crimes, violência nas entranhas da Amazônia. Rede que se espraia por ruas e rios, praças e baías – de Belém ao Marajó –Soure, Muaná, Breves... Guiana Francesa, a conectar altos e baixos gabinetes políticos, mansões e quartinhos fétidos, garimpos e bordéis, e aprisionar em suas malhas finas, para o consumo do mundo-cão, homens como cardumes. Edyr Augusto parte de questões sociais contemporâneas, a envolver novas tecnologias de comunicação e publicalidade, como Facebook e Watsapp, para atualizar o leitor com questões que, embora contemporâneas, não são nada novas, apenas ignoradas, olvidadas, posto que ativas desde muito no sufocamento do homem amazônico, belenense, marajoara, periférico, pobre. Ao tocar em tais questões – escancará-las com seu estilo pungente! -, ao contextualizar sua narrativa verossimilíssima nesse cenário, Edyr Augusto, outra forma, outro ritmo, outra escritura, é verdade, não deixa de se aproximar de Dalcídio Jurandir (1909-1979), o grande romancista do Marajó que há setenta e cinco anos, ao lançar seu “Chove nos campos de Cachoeira” (1941) iniciou uma sequência literária de dez romances, a série “Extremo Norte”, entre os quais se encontram “Marajó” (1947) e “Belém do Grão Pará” (1960), onde tais questões já aparecem, embora não com o mesmo realce de “Pssica,” no qual a prostituição infantil, a pedofilia, o tráfico humano para a escravidão sexual e a pirataria dos ratos d’água são trazidos ao primeiro plano. Mas os germes da dura realidade que hoje vitima meninas já está lá. Veja-se, por exemplo, o caso do professor Proença e sua enteada, Flor, filha de D. Rosa, no “Chove”:

“Proença tinha um jeito especial na voz para chamar: — Flor? Ó Flor... E Flor vinha, langorosa, com papelotes no cabelo e uma tesoura de cortar unhas: — Me estás chamando, pai Proença? D. Rosa achava mimoso que Flor chamasse assim para Proença. Flor tirava caspa de pai Proença. Flor se queixava dos alunos para pai Proença. Flor lia o Tico-Tico e tomava a lição dos alunos, diante dos olhos vidrados, ásperos, depois ferozes, de louco, do seu Proença. Flor, quando Euzébia de lá soltava a fatal cantiga que tanto provocava e abalava os nervos de D. Rosa, cantava à meia voz uma modinha terna. E Proença, com a palmatória, a loucura nos olhos, pensava no lindo corpo de Flor que lhe aparecia bem seu, estalando as juntas dos pés, depois da meia noite, quando D. Rosa roncava conveniente” (Jurandir 1941: 76). 

E em “Belém do Grão Pará”, onde a decadência financeira dos Alcântara, reflexo da cidade sob a crise na economia da borracha, se faz narrar simultânea a certo afrouxamento de princípios por Seu Virgílio, chefe da família, que desvia dinheiro da Alfândega, onde trabalha, e à noite espreita com volúpia o corpo dormente da menina Libânia, agregada da casa, semiescrava, enquanto ela dorme:

“Seu Virgílio entrou rapidamente, como um urubu e viu no chão com a pouca escuridade aquela figura deitada, tão sossegada e composta que o fez recuar. O gato, agora, miava no telhado como alertando a família. Quis sair, pegar na vassoura, espantar o bichano. Mas a adormecida o prendia. Curvou-se, sustando a respiração, olhou-a demoradamente. Via no rosto dela um vinco, um sinal de adivinhação como se a natureza da moça, o seu anjo da guarda, estivesse vigilante, consciente do perigo, ou todas as partes do corpo, por um misterioso reflexo, já eriçadas contra o homem. E dentro daquele corpo no chão, só havia sono, sono, sono. Seu Virgílio curvou-se mais, como se despencasse, visse algo da própria situação em que se precipitava. Libânia só mostrava o rosto. A janela do quarto estava entreaberta. Virgílio, dobrado, tremia um pouco, deu-lhe vontade de chamá-la, dizer-lhe: minha caboquinha... meu... chegou mesmo a murmurar. Ela nem se mexia, rosto franzido. Dormindo, parecia mais adulta. A boca, às vezes entreaberta, aqueles lábios na degustação do sono ou dos sonhos eram para Virgílio uma sedução dolorosa, em que se via monstruoso e ridículo” (Jurandir 1960: 146). 

“Consciência, coração, sexo, poluíam-se, começavam a feder. Via no espelho agora o seu Virgílio levando papeis, aceitando o maço de cédulas, debruçado sobre a inocente adormecida” (Op. cit: 176).

Em “Pssica”, conteúdo e forma são mais diretos, agressivos, chocantes. A miséria, porém, é a mesma que em Dalcídio Jurandir, onde resultava tanto da estrutura de exploração “feudal” instalada no Marajó quanto do abandono e descaso político. Em Edyr Augusto, contudo, este fundo geral ganhou complexidade com o advento do crime organizado. A propósito, outro paralelo, desta vez com o romance “Marajó” não deixa de ser interessante, porque sintomático da dura realidade. Tem a ver com o momento em que Missunga, filho de Coronel Coutinho, o todo-poderoso da Ilha – “Seu pai era o dono daquele rio, daquela terra e daqueles homens calados e sonolentos que, nos toldos das canoas, ou pelas vendas, esperavam a maré para içar as velas ou aguardavam quem lhes pagasse a cachaça. Na cidade, longe da vila, quanta noite de champanhe, espremido do suor e do sangue daqueles caboclos, dos vaqueiros que fediam a couro e a lama ouvindo nos campos os tambores do Espírito Santo” (Jurandir 1947: 18) - assume, por ocasião da morte do pai, o lugar deste no controle, tornando-se seu duplo. Então, alguém diz: “Deus tira um Coutinho, põe no mesmo lugar um mesmo Coutinho” (Op. cit: 153). Em “Pssica” algo similar ocorre. Desta vez, quando Preá assume o lugar do pai, Tabaco, no comando da quadrilha de ratos d’água: “Agora era o dono de 11 mil litros de óleo diesel, motosserra, motor de barco, dinheiro e mercadorias. Agora é eu” (16). Mas os paralelos aqui traçados não visam amarrar ou submeter “Pssica” ao “Extremo Norte”, nem Edyr Augusto a Dalcídio Jurandir. Obras e autores distintos. Assim, não obstante as aproximações feitas, tomei o cuidado de não expor demais ou citar “Pssica”, salvo neste último caso, a fim de conservá-lo o mais intacto possível para a experiência do leitor como um convite e um incentivo. Que, aliás, estendo a ambos. Repito: são obras e autores profundamente diferentes, com valores e méritos próprios. A realidade abordada é que, de certa forma, é a mesma, sempre a impulsionar Jane, personagem de “Pssica”, ao pedido fundamental: Me salva! E nisto, aliás, ela também se irmana a personagens dalcidianas: Quem não se lembra de Felícia, a desamparada prostituta do “Chove”, ou de Arlinda, a órfã tomada para escrava doméstica em “Passagem dos Inocentes” (Jurandir 1963)? Mas vem de um amigo a quem respeito e admiro a melhor forma de aproximação, que é também reconhecimento da distância entre os dois autores, enviada pelo Facebook como sugestão de leitura: “Precisas ler o Edyr Augusto, ele é o Dalcídio pós-moderno, no melhor sentido dessa expressão”. Li. Leiam!

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