NÃO EXISTE UMA LITERATURA PARAENSE?!
Por Edilson Pantoja
"A palavra distingue o homem entre os animais;
a linguagem, as nações entre si - não se sabe
de onde é um homem antes de ele ter falado."
J.-J. Rousseau
(Publicado originalmente em fevereiro de 2003)
Enquanto pensava a respeito do texto "Literatura Paraense existe?", de autoria do professor Paulo Nunes, tive, repetidas vezes, a afirmação acima a borbulhar em minha reflexão. Resolvi torná-la epígrafe de minha argumentação. Quis ver aí um mote que talvez me permita pensar uma perspectiva diferente daquela enfocada por Nunes. O pequeno trecho, constante do "Ensaio sobre a origem das línguas" tem por tema, conforme o próprio título da obra enuncia, a linguagem - linguagem verbal, deixe-se frisado. E é oportuno que se observe a relação entre universal e particular aí referida. Aprecio no trecho a importância que dá ao lugar (topos) - ao elemento pátrio, portanto - como sendo essencial para a constituição da identidade, como aquilo que concede características próprias ao particular, ao regional, como aquilo que lhe fornece o seu quid, que o reveste da cor local. Afinal, "não se sabe de onde é um homem antes de ele ter falado."
A considerar o dito, penso não se poder, em nome de um desejo de universalização, suprimir o regional. O universal não existe sem o particular, o nacional não existe sem o regional, de modo que, em nome do primeiro, não se pode ignorar o segundo. E muito embora concorde com Nunes quanto à postura simplória que leva alguns a "misturar palavras azedas que provocam estranhamento a olhos e ouvidos", não vejo que haja, entre este tipo menor de literatura e a denominação pátria Literatura Paraense, uma relação necessária e exclusivista que autorize esta literatura de baixa qualidade a representar a "manifestação literária dos autores nascidos no Pará".
Este mal-fazer literário, aliás, me faz lembrar a referência que Lindanor Celina faz a um comentário de Dalcídio Jurandir. Conta Celina em seu "Pranto por Dalcídio Jurandir" que durante o tempo em que Jurandir hospedou-se em sua casa, e que a orientava no ofício de escritora, ela, o marido e Dalcídio costumavam frequentar o sítio do casal lá para as bandas de Icoaraci. Nas cercanias do sítio havia um casal de idosos a quem Dalcídio muito gostava de visitar. O leitor que me perdoe a longa citação, mas considero extremamente oportuno inseri-la aqui. O comentário de Dalcídio é também precioso como norte para quem deseja fazer literatura com qualidade. Registra Lindanor à página 66-7:
"Vamos ver os velhos?" - ele convidava como se dissesse: "vamos ouvir os velhos?" Dalcídio nada perdia. (...) O velho era bíblico, sua mulher também, mulher evangélica, valente, mas com um danadinho sentido de humor. Falava com força, dizia coisas assim: "Nas alvas da madrugada", ou "Indagorinha passou por aqui um galo espaventado"... Se o cachorro latia desatinado, bradava: "Me acaba com essa sinagoga!" Teriam medo da morte? Uma hora perguntei: "A senhora não quis nunca sair daqui?"
- Daqui? Mas quando! Nos arrancar destes cerrados não era pra gente cair mais-que-depressa no buraco da miséria?!
Falando das plantas: "A alma do milho..." E quando aparecia por ali um vizinho contando ferrambambas: "Ora deixe-se de ventanias!"
O velho falava amansando as palavras: "Eu conto do ontem e do hoje". Falei: "E do amanhã?"
Resposta dele: "O amanhã são enganos..." Dalcídio me olhou como iluminado: "Você viu?" E se dispunha mais ainda a ouvir o ancião, conte, conte mais... Como conversaram comprido, o velho, Dalcídio e Durval (...)
Horas passávamos no terreiro da casinha de Trancoso, tão real!
E por toda aquela redondeza levávamos o amigo.
Gostava de ouvir as pessoas. Atento ficava a escutá-las, numa espécie de fome contida como se há muito disso tivesse sido privado, a fala do seu povo, sua gente paraense.
(...)
Dalcídio ouvia e no caminho de volta a nosso rancho (sempre Itaiara, estamos em Itaiara) comentava: "Viu como eles falam? É uma riqueza. Você não deve perder esse material". - "Mas eu?" - "Sim senhora, é o seu mundo. Ouça tudo e vá anotando, que um dia isso lhe serve. É só ir buscar. Nos guardados". - "E se não der, soar falso?" - Ele ria, levantando um pouco o queixo, nem superior, mas bem dono, consciente de uma verdade, aquela sim, não tinha receio de afirmar: "Ah minha senhora, aí é que está. Se não der, não colar, a culpa é sua.".
Retomemos a argumentação anterior.
Não vejo sentido, também, na mera substituição de um adjetivo pátrio por outro. Até porque "literatura brasileira de expressão amazônica", embora seja mais largo que literatura paraense, não escapa ao regional. A própria denominação (pátria) literatura brasileira, se considerada a perspectiva mais global, é também apenas regional. O que vejo, na recusa do segundo e sua substituição pelos demais, é a expressão do Pensamento uniformizante e totalitário que Adorno e Horkheimer identificam como Aufklärung (Esclarecimento), o qual, à semelhança de um rolo compressor, passa por cima das diferenças e particularidades em nome do desejo de universalidade. Tal Pensamento é identificado como sendo a Metafísica e Razão ocidentais. Como se sabe, já em Platão os elementos particulares eram suprimidos e sacrificados em nome da Idéia (Esta, forma, modelo universal dos entes individuais). E o totalitarismo de Platão (bem compreendido, ressalte-se), condenava o fazer estético porquanto, segundo ele, encontra-se relegado ao plano da mera imitação (mimesis) do particular.
A obsessão do Esclarecimento ocupou, na Idade Média, boa parte dos pensadores em torno da famosa "Querela dos Universais", onde muito se especulou a respeito da existência ou inexistência das Idéias, dos Conceitos. Queriam saber - e isto é só um exemplo, se a Idéia Homem (a essência Homem) possuía existência própria independentemente dos homens individuais ou se não passava de mera emissão de vocábulos, de mero sopro de voz (flatus vocis).
Mas hoje esse tipo de Metafísica se encontra, se não superado, pelo menos relegado a segundo ou terceiro planos. Pensadores como Heidegger e Sartre, além de outros, realizaram importante trabalho no sentido de miná-la. Segundo eles, no que concerne ao homem, não existe uma Essência, uma Idéia universal, uma natureza humana que, a despeito das diferenças individuais (cor, altura, nacionalidade, etc.) a todos uniformizaria. Desse ponto de vista, já não existe (nunca existiu!) um modelo universal ao qual tudo se rende. O que existe de fato é o particular, o regional, o local, posso dizer, aproveitando o tema que me trouxe até aqui.
No entanto, se por um lado a Metafísica tradicional se encontra de certa forma combalida, por outro, nada impede que o Esclarecimento (alguns tradutores e estudiosos preferem o termo Iluminismo para Aufklärung) continue, a despeito disto, em sua trajetória uniformizadora. E no mundo moderno - ou pós-moderno -, conforme alguns preferem chamar à nossa realidade permeada de parafernálias tecnológicas e ao comportamento por elas determinado, os MCM (Meios de Comunicação de Massa) tentam - e conseguem - impor seus modelos "universais" a toda a gama de particulares. A mídia do Centro-Sul, no caso do Brasil, nos enfia goela abaixo, ela, sim, "fórmulas facilitadoras" homogeneizantes e totalitárias de comportamento, pensamento e, porque não dizer, de produção artística, onde nossas peculiaridades, onde o nosso topos é subsumido em nome do modelo pseudamente universal elaborado no Centro-Sul. Por isto, talvez, desejamos tanto achar nosso "entre-lugar" no campo da cultura "nacional", não querendo mais parecermos "exóticos" a tal modelo. Pergunto: existe algo mais exótico do que o linguajar de Guimarães Rosa? (Digo isto com o devido respeito, evidentemente) Ele, no entanto, é "nacional" ganha versão televisiva e tudo mais. Quanto a nós, parecemos esquecer de que, de fato, já estamos inseridos no campo da cultura nacional e que apenas não fazemos parte do modelo falsamente nacional dos MCM. Quero apenas lembrar aqui que o último "M" da sigla se refere a "Massa" e aproveito para finalizar com uma referência ao "À sombra das maiorias silenciosas", de Baudrillard, onde, segundo ele, a pós-modernidade criada pelos MCM é marcada pela ausência do sujeito, isto é, da autenticidade, da peculiaridade, da particularidade. Tudo foi subsumido num modelo único, sem vontade própria. Todo o querer e o desejar lhe é incutido a partir de fora pelos MCM.
Bem, como disse no início, toda a minha pretensão aqui foi pensar uma perspectiva diferente daquela enfocada pelo texto "Literatura Paraense existe?". E quando digo: "perspectiva", deixo implícito que não pretendo apresentar a verdade absoluta, mas tão somente uma, entre outras possíveis, maneira de ver. Quero crer que a universalidade da obra literária não é medida pela aprovação ou não dos homogeneizadores do gosto, mas pelo fato do leitor, qualquer que seja seu topos, nela se reconhecer, sobretudo, por questões existenciais, na medida em que a obra de arte literária, a boa obra, como espelho de tudo o que é humano, o reflete.
Bibliografia:
ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento - fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
BAUDRILLARD, J. À sombra das maiorias silenciosas. (...)
CELINA, Lindanor. Pranto por Dalcídio Jurandir - memórias. Belém, SECDET, Falangola, 1983.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. 9ª ed. Petrópolis: 2000.
PANOFSKY, Erwin. Idea: A Evolução do Conceito de Belo. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, s/d.
REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 6ª ed. São Paulo: Paulus, 1990.
ROUSSEAU, J.-J. Ensaio sobre a origem das línguas. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção Os Pensadores, Vol. XXIV.
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. 19ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2000. Coleção Primeiros Passos.
SARTRE, J.-P. O Existencialismo é um Humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1984. Coleção Os Pensadores.
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Texto publicado originalmente no site www.dalcidiana.blogger.com, em fevereiro de 2003.
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